quarta-feira, 26 de novembro de 2014

A carta roubada - Edgar allan Poe


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                           A CARTA ROUBADA (EDGAR ALLAN POE)



Adaptação de
Paulo Sérgio de Vasconcellos


[I]


Em Paris, logo após o anoitecer, no outono de 18..., desfrutava do prazer da meditação e de um cachimbo, na companhia de meu amigo C. Augusto Dupin, em sua pequena biblioteca. Permanecemos por pelo menos uma hora em profundo silêncio. De repente se abriu a porta do apartamento e entrou um nosso conhecido de longa data, o Sr. G***, chefe da polícia parisiense. Vinha consultar meu amigo sobre um caso que lhe estava trazendo muitos aborrecimentos.
“— Se é algo que requer reflexão”, disse Dupin, “é melhor
examiná-lo no escuro”.
“— É mais uma de suas esquisitices”, observou o chefe da polícia. O Sr. G*** tinha a mania de rotular como “esquisito” tudo aquilo que estava além da sua compreensão, e, assim, vivia em meio a uma verdadeira legião de “esquisitices”. Pôs-se a relatar o que se passara:
“— Fui informado de que um documento da maior importância foi furtado dos aposentos reais. Conhece-se a pessoa que o furtou, pois ela foi vista apropriando-se dele. Trata-se do ministro D***, que usou de uma estratégia tão engenhosa quanto audaciosa para roubar uma carta da maior importância. A senhora que recebeu a carta a estava lendo, quando foi interrompida por um outro personagem, de quem ela desejava particularmente esconder seu conteúdo. Depois de tentar em vão guardá-la numa gaveta, viu-se obrigada a deixá-la, aberta como estava, sobre uma mesa. Nesse momento, entra D***. Seu olho de lince imediatamente nota o papel, reconhece a letra do sobrescrito, que estava à mostra, percebe o embaraço da pessoa a quem a carta era endereçada, e adivinha seu segredo. Enquanto conversa sobre negócios públicos, o ministro tira do bolso uma carta de aspecto semelhante e coloca-a ao lado da outra. Ao se despedir, pega da mesa a carta que não era sua.
Sua dona viu o que acontecera, mas nada pôde fazer, pois havia uma terceira pessoa no aposento naquele momento, e ela não podia chamar atenção. Se a carta cair nas mãos de um certo alguém, cujo nome calarei, porá em cheque a honra de uma personalidade da mais alta hierarquia. Isso dá a quem a possua um poder sobre ela. A pessoa roubada precisa recuperar a carta, pois o ministro pode usá-la para fins políticos que a prejudiquem. Encarregou-me da tarefa.”
“— Não se poderia ter desejado, ou mesmo imaginado, um agente da polícia mais sagaz!”, disse Dupin, em meio a um círculo perfeito de fumaça do seu cachimbo.
“— Em primeiro lugar, realizei uma busca completa e minuciosa no palacete do ministro”, disse G***. “A dificuldade inicial era penetrar lá. Mas eu sabia que o ministro costumava se ausentar de casa freqüentemente, por toda a noite. E eu tenho chaves que podem abrir qualquer imóvel de Paris. Minha honra e minha reputação estão em jogo, além de uma boa recompensa. Investiguei todos os cantos do edifício em que pudesse estar escondido o tal papel.”
“— Mas será que a carta não está escondida em outro lugar?”, sugeri.
“— É importante que o documento esteja sempre à mão para ser apresentado a qualquer momento: é tão importante isso quanto possuí-lo”, respondeu G***.
“— Então é óbvio que está em sua propriedade”, observei “Quanto à possibilidade de ele a estar levando consigo, é algo que devemos considerar fora de questão.”
“— Totalmente”, disse o chefe de polícia. “Por duas vezes meus homens se fingiram de ladrões, detiveram-no na rua e o revistaram cuidadosamente, sem nada encontrar”.
“— O senhor, então, nos contará em detalhe a revista no palacete do ministro?”, disse eu.
“— Procuramos longa experiência em casos assim. Vasculhei o prédio todo, aposento por aposento. Examinamos todas as gavetas, toda a mobília. Usamos um microscópio potente para observar qualquer alteração recente que tivesse sido feita nos móveis para esconder a carta. Examinamos a casa toda e, depois, até mesmo as duas casas vizinhas, também com o microscópio. Vasculhamos os papéis, os livros, os tapetes, o papel das paredes, e nada. E agora, Dupin, o
que eu devo fazer?”
“— Realizar uma busca minuciosa na propriedade do ministro”.
“— É totalmente desnecessário. Tenho certeza de que a carta não se encontra ali”.
“— Não tenho outro conselho melhor a lhe dar. O senhor tem uma descrição pormenorizada da carta?”
“— Sim.” E o chefe da polícia tirou um caderninho e leu uma
jamais o vira antes.

                                                                  [II]

Mais ou menos um mês depois, fez-nos uma nova visita.
“— Bem... G***, e quanto à carta furtada?”, perguntei. “Convenceu-se, finalmente, de que não é fácil superar o ministro em astúcia?”
“— Maldito seja! Examinei o apartamento de novo, como Dupin tinha sugerido, mas foi inútil, como eu previa”.
“— De quanto é a recompensa?”, perguntou Dupin.
“— Uma bolada. Estão oferecendo o dobro, agora. Eu daria do meu próprio bolso cinqüenta mil francos para quem conseguisse trazer essa carta para mim”.
“— Nesse caso”, disse Dupin, abrindo uma gaveta, “você poderia muito bem preencher um cheque com essa quantia para mim. Depois que você assiná-lo, eu lhe entregarei a carta”.
Fiquei surpreso, mas G*** parecia fulminado, sem conseguir falar, olhando de boca aberta e olhos arregalados para meu amigo. Por fim, preencheu e assinou um cheque de cinqüenta mil francos e o entregou a Dupin. Este o examinou cuidadosamente e o pôs em sua carteira. Depois, abriu uma gaveta, tirou a carta e entregou-a ao chefe de polícia. O senhor G*** agarrou-a, com mãos trêmulas, leu rapidamente seu contéudo e, precipitando-se para a porta, saiu sem ter pronunciado uma sílaba sequer.
Quando ele partiu, Dupin se pôs a me explicar como recuperara a carta.
“— As medidas que o chefe de polícia adotou eram boas e foram bem executadas. Se a carta estivesse ao alcance de sua busca, teriam-na encontrado.”
Eu ri, mas Dupin parecia dizer tudo aquilo com seriedade.
“— As medidas eram boas, mas não se aplicavam ao caso e ao homem em questão. O chefe de polícia erra, muitas vezes, por ser ora demasiado profundo, ora demasiado superficial. Falta-lhe entender a mente de seu antagonista e identificar-se com ela, avaliar com precisão o espírito do seu adversário. O chefe de
polícia e seus homens só se interessam por suas próprias idéias sagazes; quando pensam na astúcia dos outros, levam em consideração só a sua própria astúcia. É por isso que um criminoso que tem uma esperteza diferente, acima ou mesmo abaixo da deles, consegue enganá-los direitinho.
Veja o caso da busca no apartamento de D***. O chefe de polícia partiu do princípio de que todos os homens procuram esconder uma carta roubada num esconderijo supostamente difícil de ser descoberto: um canto da casa, uma fresta, um buraco num móvel. Mas só mentes comuns agem assim, pois a descoberta do
objeto roubado fatalmente virá, só dependendo de cuidado, aciência e obstinação da parte dos que o estão procurando.

                                                                                             [III] 

G*** subestimou a astúcia do ministro. Conheço-o bem. Sua ausência de casa à noite era planejada: tinha por objetivo dar a oportunidade de fazerem a revista em seu apartamento e assim
convencer de que a carta não se encontrava lá. D*** sabia que todos os cantos de seu imóvel seriam vasculhados e examinados pelo microscópio da polícia. Não, o caso era claro e, por ser tão
claro e simples, confundiu G***. Em nenhum momento sequer lhe passou pela cabeça que o ministro tivesse colocado a carta bem debaixo do nariz de todo mundo, impedindo, dessa forma, que
alguém a visse... Comecei a desconfiar que o ministro tinha usado um método sagaz para esconder a carta: não a esconder. Com tais idéias, fui até D***, depois de colocar um par de óculos verdes. Encontrei-o em sua casa, bocejando, no ócio. Ele é, talvez, o mais ativo dos homens vivos — mas somente quandoninguém o está vendo. Queixei-me da minha vista fraca e lamentei a necessidade dos óculos. Com esse expediente, pude passar em revista cuidadosamente todo o apartamento, enquanto dava a impressão de estar atento ao que o ministro dizia. Prestei uma atenção especial numa grande escrivaninha, junto à qual ele estava sentado e sobre a qual estavam espalhados confusamente algumas cartas e outros papéis, um ou dois instrumentos musicais e alguns poucos livros. Depois de um exame circunstanciado, não vi nada que despertasse suspeita.
Finalmente, meus olhos caíram sobre um porta-cartões: uma caixinha com cinco ou seis cartões de visita e uma carta solitária. Esta estava muito suja e amarrotada e quase rasgada ao meio, comose tivesse havido uma primeira intenção de rasgá-la completamente, como coisa sem importância. Assim que lancei os olhos para ela, concluí que se tratava da carta que eu buscava. Era radicalmente diferente daquela descrita tão minuciosamente pelo chefe de polícia. O sobrescrito original fora substituído: era dirigido ao ministro, com letra pequena e feminina. Só o tamanho coincidia. As diferenças tão radicais, o estado da carta, tão incoerente com os hábitos metódicos doministro e denunciando a intenção de sugerir a insignificância do documento; isso tudo, mais a posição em que se encontrava,totalmente à vista de qualquer visitante, confirmava a minhasuspeita. Depois de prolongar a conversa com o ministro, para poder melhor observar a carta e certificar-me de que era de fato o documento furtado, despedi-me, deixando no apartamento minhatabaqueira de ouro sobre a mesa. Na manhã seguinte, voltei para buscá-la e retomei a conversa que tínhamos travado no dia anterior. De repente, ouviu-se um tiro como que de pistola, logo abaixo das janelas do prédio. Seguiramse gritos terríveis e o clamor de uma multidão aterrorizada. D*** correu para observar o que estava acontecendo. Eu caminhei até o porta-cartões, tirei a carta, guardei-a em meu bolso e em seu lugar coloquei uma de aparência exatamente igual, ao menos externamente. O distúrbio na rua fora provocado por um homem que fez um disparo em meio a uma multidão de mulheres e crianças. Provouse, porém, que o fizera sem bala, e o sujeito foi liberado, tido comoum lunático ou um bêbado. O suposto lunático era um homem pago por mim. “— Mas por que você colocou uma carta parecida com a outra no mesmo lugar? Não teria sido melhor se apoderar dela abertamente e partir?”, perguntei.
“— D***”, replicou Dupin, “é um homem violento e agressivo. Em sua casa, há criados dispostos a defender seus interesses. Se eu tivesse feito a loucura que você sugere, talvez jamais saísse vivo dali. O bom povo de Paris talvez não ouvisse mais falar de mim. Mas eu tinha um motivo a mais para agir assim. Você conhece minhas simpatias políticas. A esse respeito, ajo como partidário da senhora em questão. Ela agora tem o ministro em seu poder, já que, não sabendo que não possui mais a carta, ele agirá como se a tivesse ainda. Isso o levará fatalmente à destruição política. No presente caso, não tenho nenhuma compaixão por aquele que vai cair em desgraça, um gênio semcaráter nenhum. Mas confesso que gostaria muito de saber o que lhe passará pela mente quando, desafiado a mostrar a carta pela pessoa que ele tenta chantagear, vir-se obrigado a abrir a que eu lhe deixei em seu porta-cartões.”
“— Como? Você escreveu algo de especial nela?” “— Bem, teria sido um insulto deixar o papel em branco.D***, em Viena, aprontou-me uma boa e eu lhe disse, bemhumorado, que haveria de me lembrar daquilo. Achei que seria uma pena não lhe dar um indício sobre a identidade da pessoa quelhe foi superior. Por isso, copiei alguns versos com minha letra,que ele conhece muito bem:

...um plano tão funesto

se não é digno de Atreu é digno de Tiestes.”
 

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